"Somos anjos duma asa só e só podemos voar quando nos abraçamos uns aos outros."

Pensamento de Fernando Pessoa deixado para todos os que estão na lista abaixo e àqueles que passam sem deixar rasto. Seguimos juntos!

OS AMIGOS

sexta-feira, 22 de junho de 2012

OS SAPATINHOS CASTANHOS



Ele teria à volta de quinze anos e os seus pés nus até então, nunca se tinham enfiado nuns sapatos.
Pés calejados, tão calejados como a sua própria alma. Diferiam apenas na forma de calejo. Os seus pés haviam – à força – de se tornar resistentes e à prova de todo o piso.
A alma – essa – apesar de calejada, não enrijou nem com as pisadelas da vida. Pelo contrário, era sensível e permeável aos poucos rasgos de luz que espreitavam pelas nesgas da sua infância, mas que habilmente fazia deles uma estrada iluminada, alimento da sua contagiante alegria. Uma alma tão maleável como os galhos dos pinheiros que – vergados pelo vento – balanceavam os seus sonhos num vaivém de esperança, numa espera de bonança que o verão haveria de repor.

Foi num desses dias de verão que ele se escapou – por uma fresta rígida da opressão da vida que o obrigava a trabalhar de sol a sol e posteriormente nas rochas (à pesca) ao “acejo” da noite (fim do dia) – e foi para a praia.
Cansado, nem se livrou dos “trapos” que o cobriam e estirou-se refastelado – debaixo duma rocha – na areia fina ajeitando-a para si. O sol quente repassou-o até aos ossos e o seu corpo exausto adormeceu por tempo indeterminado. 
Quando acordou, já do sol restavam apenas algumas pinceladas vermelhas varridas pela brisa suave e mal vislumbrava o horizonte.
Aflito e receoso pelo atraso para a pesca ao acejo com o seu pai, levantou-se como se movido por uma mola mas caiu sem forças. Ficaria ali, não fora alguém o reconhecer e levá-lo num esquife para casa.
Pela primeira vez na vida não foi recebido com o cajado que sistematicamente lhe caia em cima do “lombo” ao mais pequeno motivo.

O pai chamou o único médico da terra que o internou no hospital durante um mês com uma pneumonia. Esteve à beira da morte, mas nunca tinha sido tão bem tratado, nem nunca tinha visto o pai tão brando. Pela primeira vez (apesar de não o tratar por filho) lhe chamou pelo nome.

Quando finalmente teve alta hospitalar, o médico disse ao seu pai:
- “Vá buscar a roupa e uns sapatos para o moço. Ele não vai daqui descalço”
Mas o moço não tinha sapatos, nem o pai tinha dinheiro para os comprar.
Perante a firmeza do médico e o embaraço do seu pai, o moço disse a medo que há algum tempo estava a pagar uns sapatos a prestações na mercearia da Mariana Godinho. Custaram 120 escudos, mas ainda faltavam 50 para os poder trazer. Surpreendido ma sem alternativa o seu pai foi busca-los e pagou o restante.
No dia seguinte, pela primeira vez, ele tinha nas suas mãos a caixa dos sapatos tão almejados. E agora deixo aqui as suas palavras:
«Era uma caixa de papelão…novinha… até tinha medo de a agarrar…
Abri-a devagarinho e vejo os meus sapatinhos castanhos a “rir” para mim...deitavam cá um cheirinho a novo…eu que nunca tinha pegado nuns sapatos, quanto mais calça-los, não sabia o que havia de lhes fazer. Até que o médico com um olhar enternecido, me disse:
-“Calça-os filho…”
Desajeitado lá os calcei a medo e pus-me de pé à beira da cama, mas não sabia andar com os sapatos. Parecia uma criancinha a aprender a andar…O chão era de soalho antigo e rangia debaixo dos pés e os sapatinhos brilhavam mais do que o soalho. Devagarinho dei uns passinhos e o soalho fazia: trrrtttt…trrrttt…até tinha medo daquilo…Fui até ao fim do quarto e voltei…e andei às voltinhas. Mas depois, já parecia o Fred Astaire a rodopiar e quanto mais olhava os meus pés, mais contente ficava. Senti-me tão importante... Sai do hospital todo “inchado” de sapatos novos nos pés…»
E arrematou dizendo: O que era a vida…

Nesse dia, os sonhos deste menino (meu querido pai) couberam todos numa caixa de papelão e sentiu pela primeira vez o mundo a seus pés através dum simples par de sapatos, aos quais soube arrancar um “sorriso” e passos de dança à Fred Astaire.


Obrigada Pai
da tua filha caçula



6 comentários :

  1. Parece a gente que está a ver aquele Menino. E até a lágrima espreita no canto do olho!
    Os pais eram um bocadinho "levados da breca"... mas, isso só fez dele este Pai que eu conheço do café sempre enternurado com as suas Moças.
    Que bom que vocês tenham aquele Pai e que bom que ele tenha estas Filhas. E ainda por cima ESTA que escrevendo vai pintando pedaços de vida, daquelas vidas...
    ;...)

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  2. Ai, é verdade também simpatizei com o médico. Bom homem!
    E a sua história fez-me lembrar a minha prima Mariana (também ela sem sapatos). Acho que vou escrevê-la no blog.

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  3. passando pra deixar beijinhos e bom fim de semana

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  4. Dulce,

    Vi lá no Facebook, nas minhas rápidas passagens por lá, esse lindo texto, mas voltei hoje, com calma, para poder lê-lo com atenção.
    Fiquei muito emocionada com essa história que nos trás muitas lições de vida.

    A alegria de seu amado pai coube numa caixa de sapatos. E, pensar, que não damos valor aos muitos sapatos que temos, que são as bênçãos do Senhor.

    Tenha um abençoado final de semana.

    Amei a canção do blog.

    Beijos

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  5. Amiga Dulce,
    Um testemunho de vida comovente que fala da vida dura de seu pai, de como foram os tempos dos nossos pais e avós e de muitos da nossa geração!
    Tenho um respeito enorme pelos homens e mulheres que com tantos sacrifícios ajudaram a construir o nosso país e que agora veem os seus sonhos a derrapar e o seu futuro comprometido.
    Um grande beijinho para si e um grande abraço ao seu paizinho.
    Ailime

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  6. Ai, Dulce que comovente e lembrou- me de minha mãe que me contava que na família dela, as mulheres não tinham sapatos para serem usados em casa e que menstruadas ou não, com geada ou não elas iam no curral pisar naquele chão para tirar o leite das vacas. E na missa, andavam 3 quilômetros a pé, sem os sapatos e só os colocavam quando se aproximavam da vila. Amei ler, Dulce querida! Grande abraço!

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Madre Teresa de Calcutá