"Somos anjos duma asa só e só podemos voar quando nos abraçamos uns aos outros."

Pensamento de Fernando Pessoa deixado para todos os que estão na lista abaixo e àqueles que passam sem deixar rasto. Seguimos juntos!

OS AMIGOS

terça-feira, 26 de julho de 2011

O SALVAMENTO (MEU PAI)



Ele teria uns dez anos, a pele bem curtida pelo sol. As duras solas dos pés contavam as traquinices e os tropeços nas pedras do caminho.
Seria um miúdo como tantos outros, não fora ter sido vitima do abandono irreversível da mãe - ainda em tenra idade - e ter ficado à mercê dum pai que o maltratava. 
Cresceu à força, facto que não lhe empederniu o coração - pelo contrário - tornou-o mais sensível a tudo o que o rodeava.
As brincadeiras eram improvisadas com a arte e o engenho de quem nada tinha e um dos lugares de eleição, era a praia de Sines. 
Em grupo, deliciava-se nos concursos de mergulho onde cada um tentava exibir a destreza e o fôlego, nos saltos para a água do mais apropriado rochedo do pontal surdindo até que os pulmões dessem o alerta.
Um dia, juntou-se ao grupo um menino de cinco anos que escapou sorrateiramente do seu pai,  quando se aperceberam, ele havia saltado para a água imitando os "grandes". Esta façanha deixou-o em perigo de vida e depressa começou a afogar-se perante a inércia dos muitos que olhavam aterrorizados do areal. Foi aí que o menino de dez anos (meu pai) se atirou à agua decidido a salvá-lo.

– “Agarrei-o pelas pernas e com toda a força levantei-o e nadei, nadei… até à areia. O gentio era aos magotes na beira da maré à nossa espera para nos agarrar. Estendi-o na areia e vi que ele estava bem. O pai do menino quis saber quem lhe tinha salvado o filho. Apontaram para mim. Quando ele me olhou e eu vi que era o cabo Custódio, o cabo da guarda…tremi de medo e antes que me agarrassem, fugi dali a “sete pés”.”  


Este episódio passou e ficou adormecido na rotina da sua penosa infância. Até que um dia…


Quando o sol descambava, era hora de dar asas a outra brincadeira: consistia em alisar bem uma tábua nas rochas, resultando uma espécie de Skate artesanal que os iria levar desde a vila até à praia, descendo a pique, os muitos lances de escada que lhe dão acesso. Claro que quando acabava essa trajectória alucinante nem sempre estavam intactos. Por isso faziam-no à socapa, não fosse a guarda apanhá-los e dar-lhes uma sova. Até que um dia foram mesmos "caçados" e como forma de coação, levados para o posto da guarda com o intuito de que o medo lhes travasse o arrojo desmedido e perigoso.
Eram uns quantos, o mais novo era o meu pai.
Cabisbaixo e encolhido a um canto esperando a sua vez, nem ousava olhar os guardas enquanto os amigos escutavam um sermão com algumas chapadas à mistura. Foi quando dois pés enormes estacaram à sua frente, o que o fez estremecer mais ainda... uma mão levantou-lhe o queixo para o identificar....O ar austero do guarda mudou radicalmente de expressão quando o reconheceu e disse:
– “ Ó filho, tu também aqui…metido neste sarilho…e agora? O que é que eu vou fazer contigo…”
Quando o meu pai o fitou, reconheceu-o de imediato: era o cabo Custódio. O pai do menino que ele tinha salvado.
“ Eu tremia que nem varas verdes, mas ele afastou-se de mim e foi falar com os outros guardas. Passado pouco tempo voltou e disse:
- “ Vocês podem ir, mas podem agradecer aquele gaiato que salvou a vida do meu filho. Vão e nunca mais cá apareçam.”
Olhando o meu pai, falou-lhe com ternura:
– “ E tu filho, não te metas mais em sarilhos. Eu nunca vou esquecer o que tu fizeste”


(Recolhendo as histórias do meu querido pai...)


5 comentários :

  1. Linda história e com factos bem relatados.
    A vida é sempre feita de certos eventos, este foi um grande.
    Beijinhos Dulce e Parabéns pelo teu pai e também para ele

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  2. aì... que as lágrimas embargaram-me a voz. Como se pensasse com a voz...

    Um beijinho fraterno e cuida bem desse "gaiato".

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  3. História emocionante.
    Nesse tempo os meninos ainda podiam brincar. Podiam saltar para a água do cimo dos rochedos e fazer muitas travessuras sem maldade.

    Sabiam reagir nas situações mais perigosas e mostrar que sabiam os seus próprios limites.

    É difícil não nos emocionarmos com a história em si e o tom de carinho e veracidade com que nos relata cada episódio.

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  4. Nossa, que comovente história. Gostei muito de a ler, muito mesmo.
    Paz e bênçãos, Dulce!

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  5. muito linda esta história , é tocante a forma como tu nas historias que contas transmites o amor que tens pelo teu pai ...

    abraço do tamanho do mundo ...

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As palavras de amizade e conforto podem ser curtas e sucintas, mas o seu eco é infindável.
Madre Teresa de Calcutá