Eu e o meu pai
Desde que apurei o gosto pela escrita que se
aguçou em mim a vontade de escrever as histórias da história de vida do meu
pai.
O seu carácter sensível e bondoso, frágil e
lutador, aliado à criança que preservou dentro de si, foi talvez a fórmula
certa que usou para atravessar os inúmeros e áridos desertos dos seus 87 anos.
Um poço de vivências repletas de sabedoria que transporto e guardo dentro de
mim.
Há algum tempo que comecei a juntar este espólio
sem lhe esconder o propósito, embora ache que ele nunca me levou a sério – até
porque nunca se apercebeu que eu escrevo – mas os seus olhos brilham de cada
vez que o levo a desfiar as suas memórias e esses momentos vão recheando de
conteúdo a minha própria história.
Pelo meio informo-o dos avanços da minha escrita,
mas, porque nunca gostei de ler em voz alta para ninguém – por ser lamechas e
emotiva – também nunca lhe li na íntegra o que já escrevi sobre ele…até ontem…
Veio visitar-me e atacou assim:
-“Uma vizinha disse-me que me viu no computador”
Em alerta mas escondendo o pânico interior,
retorqui com a calma que pude:
“O pai
sabe que eu estou registando em escrita a sua história, não sabe? E também sabe
que eu partilho com amigos, no “computador” as mesmas…”
“Pois…sei…mas como é isso, mostra lá…”
Senti que o momento que adiei consecutivamente
tinha chegado. Enquanto fui em busca do computador exercitei e estimulei a
minha coragem ao mesmo tempo que tentava abrandar as batidas do meu coração,
mas cá dentro só dizia: e agora?
Poisei o computador e abri as fotos ao mesmo
tempo que ia identificando cada uma com a respectiva história, até que me
disse:
- “Lê essa”
Era precisamente a que escrevi contando de forma
sucinta a sua história desde menino. Respirei fundo e comecei – pensava eu –
cheia de coragem.
Ainda mal tinha começado, o meu pai
interrompeu-me com um choro convulsivo, profundo e sentido que me cortou a
coragem em pedaços…afaguei-o já sem me esforçar para ser forte e ficámos os
dois ali, abraçados com longos intervalos entre os parágrafos para nos
recompormos, mas chegámos ao fim. Um fim que – sei – foi um início.
Levei-o à porta num abraço e na despedida
disse-me assim:
“O pai já te contou aquela, de como se escondia
do avô para não levar “porrada”?”
Respondi que não…
“Atão dexa tar que quando cá vier vou contar…eu
fui um menino muito maltratado…”
Com a lagrimita a assomar, mas orgulhoso,
finalizou:
“Mas ainda cá tô e tenho as minhas três filhinhas
que foi a melhor coisa que Deus me deu”
Obrigado pai…
Dulce Gomes